Na segunda parte da trilogia Millenium, Stieg Larsson marca alguns gols. Lisbeth Salander, que surgira como personagem secundária no primeiro livro da série, ganha merecido status de protagonista. A personagem é uma das mais deliciosas da literatura policial. Sua personalidade causa no leitor uma sensação que não pode ser resumida em uma única palavra. Dona de uma ética própria e muito peculiar, neste livro Larsson destrincha que experiências a fizeram como ela é.
Na medida em que nos aprofundamos na história de sua vida, ganham espaço outros tantos personagens que fazem deste volume ainda mais rico do que o primeiro. Miriam Wu, a amante, Paolo Roberto, o boxeador, o Gigante Loiro, a personificação em músculos do inimigo, são algumas das especiarias de Larsson que prendem o leitor para além da trama principal.
Diga-se de passagem, a trama desta vez é ainda mais instigante, com direito a tráfico sexual, proteção política e algumas reviravoltas empolgantes sob uma dinâmica ágil. A ideia de manter Lisbeth fora da narrativa durante todo o tempo em que se desenrolam os assassinatos dos quais ela passa a ser acusada, revela-se um recurso poderoso que nos mantém, assim como o próprio Blomkvist, em dúvida sobre sua inocência durante um tempo não muito longo - mas incômodo o suficiente.
A narrativa, porém, é menos coesa do que no primeiro livro, Os homens que não amavam as mulheres. A história parece ser dividida entre antes e depois dos assassinatos, mas a ruptura é de tal modo brusca que a sensação de se ter lido dois livros é inevitável. Não o suficiente da primeira parte, que retrata o período de Lisbeth fora da Suécia, se mostra proveitoso para o leitor. Se a intenção era construir um retrato sólido da personagem de forma que nós já a conhecessemos o suficiente quando sua inocência fosse posta em prova, há de ter sido excessivo. Larsson perde a medida quando conduz a narrativa pelos tais dilemas matemáticos, se arrasta nas passagens do furacão no Caribe e enche linguiça com o caso do implante de silicone nos seios.
Se Millenium é uma trilogia, a sensação é de que o primeiro livro funciona como introdução para o Michael assim como a primeira parte do segundo, para Lisbeth. Apenas daí em diante inaugura-se o que será o cerne do thriller, cuja continuação fica em suspenso. Mas isto me parece muito menos uma falha do autor do que escolha editorial. Resta ler o terceiro.
A menina que brincava com fogo. Larsson, Stieg. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.
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