sexta-feira, 29 de maio de 2009

Coração das trevas

Na primeira parte de Coração das trevas, ainda não se tem muita certeza sobre a proposta do livro. Será um romance anticolonialista? A novela de Joseph Conrad dificilmente pode ser restringida a um único tema, mas sem dúvida trata a desumanização imposta aos colonos africanos, neste caso, no Congo, com muita ginga.

Para recriar a senação de navegar o rio africano - onde o próprio autor esteve no final do século XIX -, Conrad recorre à narrativa reflexiva de seu alterego, o capitão Marlow, cuja principal missão é resgatar o comerciante Kurtz - ele que no texto representa a própria Europa (metáfora explícita inclusive na relação que mantém com o "alemão"). Na medida em que o enredo se desenrola, somos conduzidos nós mesmos às profundezas das trevas, às profundezas das almas dos personagens: Marlow diz e repete que aquele lugar suscita uma viagem interior. E é através desse caminho solitário percorrido por ele, Marlow, que testemunhamos, nós, o processo histórico - uma crítica intensa e sutil à colonização belga, vista como muito inferior à inglesa. O encontro derradeiro de Marlow com a "prometida" de Kurtz representa a absolvição, a humanização, o perdão branco deste símbolo da exploração europeia.

Coração das trevas foi publicado em 1902, no entanto, é tão atual quanto se tivesse sido escrita ano passado. Tal contemporaneidade de Conrad inspirou o cineasta Francis Ford Coppola a filmar Apocalypse now, em 1979, que ganhou versão sua mais ampla no novo milênio, Apocalypse now redux. As questões humanas e humanitárias, políticas e literárias que a novela abarca, tornaram-na grande referência da modernidade, até hoje amplamente estudada. E talvez tenha sido mesto esta a única proposta de Conrad.

A ficção é história, história humana, ou não é nada. Mas também é mais que isso: ela se apóia em chão mais firme, baseando-se na realidade das formas e na observação dos fenômenos sociais, enquanto a história é baseada em documentos e na leitura de impressos e de manuscritos - em conhecimento de segunda mão. Assim, a ficção está mais próxima da verdade. Mas deixemos isso de lado. Um historiador também pode ser artista, e um novelista é um historiador, o preservador, o detentor, o expositor, da experiência humana.
Joseph Conrad


Citação lembrada por Luiz Felipe de Alencastro,
no posfácio da edição de bolso da Companhia das Letras, 2008

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